quarta-feira, 6 de março de 2013

Qual a sua Dúvida?


Eu fui descobrindo 
o que eu queria ser, ninguém me disse. Eu ia pegando cada palavra, cada olhar, cada moeda de troco que me davam e fui montando a minha fortuna.
(Essa é só uma parte da história). O fato é que eu sempre tive sérias dúvidas a respeito de quem eu era e, o que é pior, eu sempre tive sérias dúvidas sobre quem eu queria ser. Seria isto um erro? uma falha de caráter? uma doença psicológica? Eu nunca soube, a dúvida é eterna, a gente só descobre um pouco.
E foi justamente neste pouco que eu me apoiei. Afinal, uma pista é melhor do que nenhuma. Este é o segredo: juntar grãos de areia e inventar, o máximo que a imaginação permitir. Foi assim que viveram todas as pessoas que, de um jeito ou de outro, sobreviveram à seleção natural, dos primórdios até os dias de hoje.
Não existe outra fórmula. Os poetas fazem poesia, tentando romantizar, os excluídos assaltam, os políticos mentem, os padres alimentam ideias malucas, sobre um lugar póstumo, as mulheres se apaixonam, as crianças se apaixonam, nada é novidade, tudo é do mesmo jeito a muitos anos, a milhares de anos, não é romântico, é real, Olhe o jovem. Seus pais, que são médicos, o incentivaram a cursar medicina, ele se revoltou, mas poderia ter acatado, é isso: ele não tinha certeza de nada, fez o que podia fazer, usou o segredo.
Algumas coisas você faz porque todo mundo faz, também é assim. Mas chega um momento em que isso acaba e você passa a ter que fazer as coisas por vontade e decisão própria. Não há outra possibilidade: ou você rompe a casca do ovo ou morre sufocado.
"Há, porém, uma coisa, ó Venerabilíssimo, que despertou em mim especial atenção, logo que conheci a tua doutrina. Nela tudo fica completamente claro. Tudo é demonstrado. Tu mostras o mundo sobre a forma de uma corrente perfeita, jamais interrompida, composta de causas e efeitos. Nunca, em parte alguma, isso se percebeu com tamanha nitidez, nem tampouco foi exposto tão irrefutavelmente. Esse cosmo que forma um conjunto inteiriço, sem lacunas, límpido como cristal, não depende nem do acaso nem dos deuses. Se o mundo é bom ou mal, se a vida em seus confins é sofrimento ou prazer, essa pergunta pode permanecer sem resposta. Pode até ser que isto tenha pouca importância. Mas a unidade, o nexo existente entre todos os acontecimentos, o fato de todas as coisas, tanto as grandes como as pequenas, estarem incluídas no mesmo decorrer, na mesma lei das causas, no mesmo nascimento e morte, tudo isso, ó Venerabilíssimo, é um mérito indiscutível da tua doutrina. Entretanto, nesta mesma doutrina, há um lugar onde tal unidade e lógica das coisas está interrompida. Por uma pequena lacuna penetra na unidade da vida um elemento estranho: refiro-me à tua tese acerca da possibilidade de superarmos o mundo e alcançarmos a redenção. Me desculpe contestá-lo, mas não nos é dado saber o segredo daquela experiência que tivestes antes de atingir o ápice. Por isso, hei de prosseguir sozinho na minha peregrinação, não para ir à procura de outra doutrina melhor, já que sei muito bem que não há nenhuma, senão para me separar de quaisquer doutrinas e mestres, a fim de que eu possa alcançar sozinho meu destino ou então morrer".

[HESSE, Hermann. In: Sidarta. Editora: Civilização Brasileira, 12° Edição, 1974, pág.s 28-30, com adaptações] 

3 comentários:

  1. Nota: em 1946 Hermann Hesse recebeu o Nobel de Literatura.

    Seu livro "Sidarta" é altamente recomendado para quem procura se compreender em termos espirituais.

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  2. "Nada lhe posso dar que já não exista em você mesmo. Não posso abrir-lhe outro mundo de imagens, além daquele que há em sua própria alma. Nada lhe posso dar a não ser a oportunidade, o impulso, a chave. Eu o ajudarei a tornar visível o seu próprio mundo, e isso é tudo".

    (Hermann Hesse)

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  3. caminho, e a mim
    pergunto, na vertigem
    - quem sou?
    para onde vou?
    qual minha origem?
    e parece-me um
    sonho a realidade

    (Augusto dos Anjos)

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