domingo, 25 de janeiro de 2015

Manifesto Clorofila

Ontem assisti a uma reportagem sobre a seca em São Paulo. É assustador: a principal reserva de água do Estado está com 5,2% de sua capacidade. Em função disto, a população enfrenta racionamentos diários, não só de água, uma vez que a matriz energética do país é composta principalmente por hidrelétricas.
Na matéria, apresentada num telejornal, um cano havia estourado e a água jorrava, feito uma cachoeira, pelas ruas da capital paulista; uma cidadã, indignada, se enfiou debaixo da corrente e ficou ali, durante cinco ou seis horas, numa atitude de protesto contra o desperdício deste mineral tão precioso.
E no mundo inteiro é isto que se vê: uma consciência nascente, tímida ainda, mas nascente, vital, necessária; uma consciência retratada nos cartoons de Pawel Kuczynski, na poesia de Nicolas Behr, nos estudos científicos de Gilberto Montibeller Filho, como em o "O Mito do Desenvolvimento Sustentável" (obra que eu li durante a graduação) etc.. Mas esta é uma consciência que surge por vontade própria, através de esforços individuais - quase não se vê esta consciência no dia-a-dia das grandes instituições. O cinema hollywoodiano, por exemplo, adora retratar o apocalipse através dos programas de computador - grandes enchentes, quedas de meteoros - mas sempre com o intuito de vender; a indústria automobilística tem criado modelos ecologicamente corretos, mas só para impressionar; os EUA, maior economia do mundo, negaram-se a ratificar o Protocolo de Kyoto e por aí vai.
Enquanto os principais responsáveis pela degradação ambiental do planeta não aderirem ao plano, só nos resta rezar (protestar):

"as árvores dominam o planeta
e o papel de seus talões de
cheques é feito de peles humanas

as árvores dominam o planeta
e os móveis das suas casas
são feitos de ossos humanos

as árvores dominam o planeta
e seus carros são movidos
a gás metano, produto da
decomposição de corpos humanos

as árvores dominam o planeta
e bebem sucos especiais,
mistura de sangue e saliva,
produzidas por células humanas

as árvores dominam o planeta
e fertilizam o solo
com carne humana, moída

as árvores dominam o planeta
e olhos humanos fazem a delícia
dos cafés-da-manhã, alegrando
as feiras do bairro
nas florestas populosas

as árvores dominam o planeta
e criam, em estufas, humanos
infláveis para produzir sombra

as árvores dominam o planeta
e escolhem as modelos mais
gostosas para enfeitar
suas praças

as árvores dominam o planeta
e quando têm frio
queimam grande quantidade
de carne humana, congelada,
estocada permanentemente
no polo norte” (p.6-7).

[BEHR, Nicolas. Iniciação à Dendrolatria. Distrito Federal: Teixeira, 2° Ed., 2011]

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Je suis Charlie?

O mundo, ou pelo menos a parte ocidental dele, afirma que “todos somos Charlie”, com a intenção de nos sensibilizar com a tragédia, de nos fazer pensar. Sim, eu sou Charlie, mas a questão, no meu entendimento, é mais ampla do que isto.
Não se trata de um simples atentado terrorista, isolado no tempo e no espaço, mas de uma guerra entre civilizações diferentes, entre ideologias diferentes, entre culturas diferentes; se trata de um processo separatista que se alimenta de fatos históricos. Inclusive, de fatos históricos recentes. Em 2003 o Iraque foi invadido e devastado pelos norte-americanos e, de uma maneira ou de outra, por todos aqueles que assistiram ao massacre; na época, alegava-se que o ditador Saddam Hussein estava enriquecendo urânio para produzir armas de destruição em massa; então, invadiram o país, destruíram o país, derramaram o sangue de milhares de inocentes e, no final das contas, nenhuma bomba atômica foi encontrada. Na Líbia, em 2011, o mesmo processo – o ocidente, desta vez com a participação direta dos países europeus, derrubou mais um ditador, Muammar AL-Gaddafi, sob o pretexto de “preservar os civis” do horror; estima-se que a intervenção militar liderada por França, Reino Unido e EUA, tenha custado em torno de 4,6 bilhões de dólares, dinheiro suficiente para se construir mais de 15 mil escolas.
É claro que não sou a favor de caras como Hussein e Gaddafi, caras que viviam em palácios, que erguiam estátuas de si mesmos, que usavam mulheres como se fossem lenços descartáveis; sou contra estes sujeitos, mas, o que dizer dos métodos utilizados pelo ocidente para derrubá-los? Até a filosofia dos livros de auto-ajuda diz que “todo o mal que se pratica, volta”, e é justamente isto o que está acontecendo. O Atentado das Torres Gêmeas, os reféns que foram decapitados, o grupo "Estado Islâmico", o massacre no Charlie Hebdo, tudo isso não passa da contrapartida do que foi feito, tudo isso não é mais do que a vingança pelas famílias arruinadas, pelos inocentes mortos, pela moral ofendida.
Os franceses falam em “liberdade de expressão” – eu não concordo. Não acho que “debochar”, “tirar sarro”, “satirizar” ou sei lá o quê, seja uma coisa legal; penso que “liberdade de expressão” seja “dizer de uma maneira inteligente”, penso que “liberdade de expressão” seja equalizar e não expandir diferenças, penso que “liberdade de expressão” seja não responder ao ódio com mais ódio. Enfim, se os terroristas bombardeiam o ocidente, o ocidente bombardeia os terroristas; está escrito na própria Bíblia: “Não tenham piedade: exijam vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé” (DEUTERONÔMIO 19:21).

sábado, 10 de janeiro de 2015

Carta à Nicolas Behr

Caro Nicolas,

Recebi, com imenso prazer, o seu livro Iniciação à Dendrolatria. Obra muito humana, que tenta resgatar a importância do meio-ambiente, que de uma maneira indireta combate o consumismo “casa de madeira/ mesa de madeira/ lápis de madeira”, que recondiciona o nosso olhar sobre o mundo, como na obra Manifesto Clorofila, quando você diz “as árvores dominam o planeta/ e escolhem as modelos mais/ gostosas para enfeitar/ suas praças”; aliás, todos os seus trabalhos seguem essa linha reflexiva, contracultural. Quando você cria “Braxília”, você tenta fazer da cidade um “lugar mais afetivo”, digamos assim; quando, na sua juventude, você publicava mimeógrafos, você protestava... E a sua atividade de poeta não se restringe somente à escrita, o que também é de se elogiar; você dá palestras, envia livros por correio, é fundador de ONG’s, participa de documentários, enfim, neste sentido, você consegue dar à poesia (que é uma coisa muito teórica, muito introspectiva) um caráter prático, social. Acredito que os poetas devam seguir esta linha – transportando o texto escrito para a realidade, transformando o mundo a sua volta. Uma prova do poder transformador da poesia é o ataque ao jornal Charlie Hebdo; os cartoons que o veículo publicava atingiam a moral dos extremistas, um simples cartoon, um desenho, algo muito parecido com um poema, que também é simples.
Fiquei surpreso quando abri o livro e vi uma passagem de Khalil Gibran Khalil; se fala tão pouco sobre este escritor libanês. Eu, particularmente, leio-o desde criança; suas parábolas são divinas, por exemplo, no texto O Louco, em que o personagem vai viver num hospício, por escolha própria, e quando indagado sobre os motivos, responde:
- Meu pai queria fazer de mim uma reprodução de si próprio; o mesmo queria meu tio. Minha mãe pretendia fazer de mim a imagem de seu ilustre genitor. Minha irmã considerava seu marido marinheiro o exemplo perfeito que eu deveria seguir. Meu irmão achava que eu tinha de ser como ele, um excelente atleta. E meus professores também. O de Filosofia, o professor de música, o de lógica, cada um queria que eu não fosse senão o reflexo de sua própria face. Desta forma, vim para este lugar. Acho a convivência mais sadia.
Como diria Celso Furtado, filósofo universal, “devemos pensar a partir da nossa própria cabeça”; é claro que jamais seremos 100% originais no sentido da criação, no sentido de “produzir o novo”, mas, em alguma medida, é importante tentar, é importante reinventar, deixar de ser uma mera cópia.
Realmente, como você disse no outro e-mail, Iniciação à Dendrolatria possui uma “índole concretista”. As palavras distribuídas sobre a folha, de modo a aproveitar melhor os espaços; o desenho da página 49; as setas da página 51; o homem em forma de H2O, na página 67; a capa do livro “Raízes do Brasil”, como se fosse um poema, na página 68; a fonte das letras, que varia de texto pra texto; pra mim, estes elementos tornam o livro mais interessante; já de cara, no folhear das páginas, o leitor se sente instigado e, a partir desta primeira leitura, seguem-se outras.

o ipê não floriu?
corta o ipê!

a mão não floriu
corta a mão!

Adorei o presente.
Abraços, Diego.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Escrever é a ponta do iceberg

Os livros de poesia estão ultrapassados – não se encontra nada de diferente. São sempre os mesmos – Quintana, Drummond, Gullar, Bandeira – os bons e velhos modernistas, nada contra, sou fã incondicional de todos, mas, e os poetas novos, não existem?
Nas páginas de Literatura e nos blog’s há uma penca deles; escrevem por um tempo e depois desaparecem; alguns participam de concursos literários, vencem e param. É muito difícil encontram quem se interesse continuamente por poesia, não sei se pela falta de perspectiva negocial ou pela falta de uma “nova corrente” que revolucione a forma e o conteúdo do texto, não sei, o fato é que as estantes das livrarias estão modernistas demais. Não é que a poesia tenha morrido, não é isso, ela existe nos calendários, nos e-mails, nas mensagens de natal, nas festas de formatura, no meio acadêmico, ela existe, o problema é que ela nunca vira livro.
E quando vira, é aquela mesmice sem fim: versos sobre versos, recheados com palavras enigmáticas, falando de amor ou de sentimentos reprimidos ou, como diria Nicolas Behr “versos insossos, inodoros, insípidos, incolores, inócuos e inconseqüentes”. Quase nunca se vê o “poema/processo”, com o seu simbolismo universal, ou mesmo o “poema concreto”, com a sua linguagem tipográfica, geométrica; e quando estes aparecem, não são inteligentes. Há uma espécie de conservadorismo entre os poetas – ou são puritanos demais ou saudosistas demais ou modernistas demais ou concretistas demais (ou são de-menos?). Não há diálogo entre os versejadores; há competição, pra ver quem escreve melhor. A verdade é que a poesia se tornou algo inútil, se tornou uma abstração sem prática; os jovens, os de meia-idade e os mais velhos produzem poemas por produzir, por passatempo, e depois guardam os textos ou os publicam na linha do tempo das redes sociais, mas, como a maioria “não curte”, aquilo vai sumindo, aquilo vai deixando de ser importante, vai ficando nas entrelinhas.
A “nova poesia”, se é que ela existe, deve ser capaz de repensar este cenário, deve ser capaz de abocanhar as diferentes temáticas, de promover a aproximação entre as diferentes correntes, de escapar da beleza por si só, de estimular a difusão do pensamento crítico, a produção do texto informativo, não-piegas, multicanal, reflexivo. Em “Poesia e composição”, João Cabral de Melo Neto escreve: “Primeiro, o jovem autor vai procurando-se entre os autores de seu tempo, identificando-se primeiro com uma tendência, depois com um grupo já de orientação bem definida, depois com o que ele considera o seu autor, até o dia em que possa dar expressão ao que nele também é diferente desse seu autor” (p.727). A pergunta é: quando este dia chegará?

[NETO, João Cabral de Melo. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1999]