sábado, 28 de junho de 2014

A Vida é Bela

Tem gente que atravessa a vida sem fazer nada de diferente, nada de emocionante; tem gente que vive dentro de um projeto, como se a vida fosse matemática; tem gente que desaparece da existência como se nunca tivesse estado nela. Mas comigo não.
Volta e meia me lembro da época em que eu era um menino e saia para jogar bola com a molecada. Jogava a tarde inteira – no campinho, na rua, no pátio – não tinha outras preocupações, não me preocupava com o futuro, com a crise econômica mundial, não me preocupava com o “fim dos tempos”, ainda não havia iniciado a busca pelo “grande amor da minha vida”, eu apenas passava a tarde inteirinha correndo, imaginando jogadas, evocando os deuses do futebol, e não havia nada além disso, nada, nada além do sonho – eu era absolutamente feliz.
Hoje, vinte anos depois, ainda sinto saudades, ainda sinto vontade de colocar a bola debaixo do braço, reunir a galera e jogar de pés descalços a tarde toda, mas, por mais que o sonho e a vontade continuem existindo, não tenho mais tempo. Hoje eu trabalho dois turnos, tenho contas a pagar, tenho compromissos de todos os tipos, tenho afazeres domésticos, metas, estudos e, o que é pior, não sou mais criança. Isto é, aquele tempo passou, evaporou-se, diluiu-se; o que eu não aproveitei, essa empolgação que eu ainda tenho, de “jogar mais”, de correr, de disputar, de fazer o gol, a liberdade, tudo isso está guardado na lembrança daquelas tardes pueris; não é mais possível recuperar os dias em que eu fiquei de castigo, os dias de chuva, os dias em que eu estava com febre... esses dias se perderam.
(Uma pausa para pensar).
Não quero mais perder as coisas – as paixões, os sonhos, as vontades, as emoções, os ideais, os ímpetos, as motivações – quero aproveitar tudo ao máximo, quero chegar aos 70 anos e ter histórias pra contar, sobretudo o que foi feito; quero subir os 70 degraus da escada e, lá de cima, poder olhar pra baixo, com orgulho, com a sensação de quem experimentou cada passo, sem preocupar com a ideia de que haveria outro, e outro, e mais outro, sem a ideia de que depois não haveria como voltar, enfim, sem a ideia de que aquilo pudesse ser uma conta.

[Referência: minhas memórias infantis].

quinta-feira, 19 de junho de 2014

A Voz do Morro

O mundo não é certinho, existe muita malandragem por detrás das coisas. É como diz o ditado “quem tem boca vai a Roma”.
Os políticos, os religiosos, os empresários - e toda essa gentinha que tem a posição social como objetivo de vida - pensam que o pobre é um “joão-ninguém”, mas se enganam – o morro tem cultura, o morro tem ideias, o morro tem voz.
Se a “elite” branca importa os bons costumes da Europa, a rapaziada reinventa-os aqui, nas favelas; se a “elite” branca dança valsa quando a filha faz 15 anos, a rapaziada dança o passinho; se as patricinhas fazem cara feia, a funkeira manda a letra “Não olha pro lado, quem tá passando é o bonde/ Se ficar de caozada, a porrada come”:


Pois é, há uma guerra, uma “luta de classes”, como diria Marx. Mas eu jogo no time da rapaziada, como diria Bezerra da Silva “No morro ninguém tem milhões de dólares depositados na Suiça”:


E por aí vai. Mas não é só isso não. No âmbito do comportamento também há disputa: o que seria do homem pós-moderno sem a malandragem da conquista? o que seria do homem se, no século XXI, tivesse que decorar poemas românticos para conquistar mulheres? ou, em outras palavras, haveria amor sem “mentiras sinceras”?


[Referências musicais: (1) Fala mal de mim, de Mc Ludmilla; (2) Reunião de bacanas, interpretada por Originais do Samba; (3) Coração de malandro, de Martinho da Vila]

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Farelos de Fatos

Abri a obra “Um amigo de Kafka”, de Isaac Bashevis Singer, vencedor do Prêmio Nobel de 1978, e escolhi um conto para ler. O primeiro parágrafo, no entanto, não me agradou, nem o segundo, nem o terceiro... achei o texto meio “ideologizado demais”; mesmo assim segui e, apesar de não ter gostado do estilo do escritor, selecionei algumas passagens marcantes, que me fizeram refletir.
Depois de duas páginas, a música “Imagine” me veio à cabeça, as ideias de John Lennon – “um mundo sem fronteiras”, “sem religião”, “uma irmandade de pessoas” – tudo isso me veio à cabeça, quando li esse trecho do livro: “[...] afinal, o que é um filho? O que torna o meu sêmen mais meu do que o de outra pessoa? Qual é o valor de uma ligação de carne e sangue? Somos todos espuma do mesmo caldeirão. Retroceda algumas gerações e toda essa multidão de estranhos provavelmente teve um avô em comum. E daqui a duas ou três gerações, os descendentes desses que são parentes agora serão estranhos. É tudo temporário e passageiro: somos bolhas do mesmo oceano [...]. Se não se pode amar todo o mundo, não se deve amar ninguém” (p.252).
Só que tudo isso é muito utópico, a realidade que a gente vive não tem essa poesia toda. Crianças de três anos são molestadas por pedófilos; na Idade Média, inocentes foram queimados na fogueira; Jesus Cristo foi crucificado; na África, ainda hoje, muita gente morre de fome; parafraseando Belchior, “nem tudo é divino, nem tudo é maravilhoso”. Então, como se soubesse disso, Isaac Singer disse: “Raciocinei que no caos existem leis precisas. Os mortos continuam mortos. Os vivos têm suas recordações, cálculos e projetos. Em alguma vala da Polônia se encontram as cinzas dos que foram queimados. Na Alemanha, os antigos nazistas estão deitados em suas camas, cada qual com a sua lista de assassinatos, torturas, estupros. Em algum lugar deve existir um Onisciente que conhece os pensamentos de cada ser humano, que conhece as dores de cada mosca, que conhece cada cometa e meteoro, cada molécula da mais distante galáxia. Dirigi-me a ele. Bom, Todo-Poderoso Onisciente, para o senhor tudo é justo. Conhece o todo e possui todas as informações... e é por isso que é tão esperto. Mas o que vou fazer com os meus farelos de fatos?” (p.253).

[SINGER, Isaac Bashevis. Um amigo de Kafka. In: O Filho. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008. Tradução de Lia Wyler]

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Quem será o próximo?

Não é fácil julgar pessoas, afinal, como diz o ditado, “nem Jesus agradou a todos”. Mas, em função das situações se repetirem e da gente ser maior de idade, dizer o que se pensa à respeito do comportamento de determinados sujeitos não é nenhum crime.
Antes de qualquer coisa, gostaria de dizer que não sou moralista, ou seja, não penso em termos de “certo ou errado” e, portanto, me permito “sair do molde” que a sociedade conservadora impõe; também não sou liberal, pois os liberais não seguem regra nenhuma, e eu, mesmo não sendo um moralista, sigo algumas regras, por exemplo, escovar os dentes. Em resumo, a palavra “flexível” é a que me define melhor.
Mas a grande maioria das pessoas (pra não dizer a totalidade), pratica o moralismo. Mas não é aquele moralismo bíblico – que respeita o pai, que respeita a mãe, que cumprimenta o vizinho e teme a Deus – é um moralismo fajuto, made in Paraguai, pau-no-cú. (Com um exemplo vai ficar mais fácil de entender). Trabalho num banco, numa agência de médio porte, com outros 26 colegas. Com uns a gente se dá, com outros não, faz parte. Na última semana, porém, dois destes colegas, dois gerentes, diga-se de passagem, se comportaram, em relação a mim, de uma maneira muito vil. A situação aconteceu duas vezes, em oportunidades distintas. Na primeira vez, ao me ver, o sujeito virou o rosto, de propósito; na segunda, ao passar por mim, o sujeito baixou o rosto; em ambas ocasiões a intenção era “evitar o contato”, ignorar e, até, atingir. O pior de tudo é que não havia um motivo que justificasse aquilo, pois se houvesse acontecido alguma coisa, alguma discussão, algum desentendimento, a gente até entenderia.
Mas eu não consegui entender: como o gerente de um banco, que, para a sociedade, é alguém importante e respeitável, pôde ser capaz de um ato tão pau-no-cú? como o gerente de um banco, um “cara cheio de moral”, pôde ser capaz de um gesto tão baixo?

Por isso é que eu leio Bukowski:
“- Não foi à polícia? – perguntou o garçom.
- Bem, você sabe, Carl, é difícil... eles meio que me adotaram na família. Não é como se tentassem esconder alguma coisa de mim.
- Do jeito que eu vejo, você é cúmplice de um assassinato.
- Mas o que eu passei a pensar, Carl, é que aquele pessoal na verdade não parece ser gente má. Já vi pessoas que antipatizo muito mais e que nunca mataram nada. Não sei, é realmente confuso. Até penso no cara do freezer como uma espécie de grande coelho congelado...
O garçom puxou a Luger de trás do balcão a apontou-a para Mel.
- Tudo bem – disse - fique paradinho aí enquanto eu chamo a polícia.
- Escuta, Carl... não é você que tem de decidir isso.
- O diabo que não sou! Eu sou um cidadão! Vocês babacas não podem simplesmente sair por aí matando e metendo gente em freezers. Eu posso ser o próximo!
[...]
Carl estendeu o braço para a esquerda e puxou o telefone, que estava no balcão. Quando fez isso, Mel pegou a garrafa de cerveja e atingiu-o no meio do rosto com ela. Carl deixou cair a arma [...]. Mel pegou a Luger, mirou com cuidado, apertou o gatilho uma vez, depois guardou a arma numa sacola de papel pardo [...] dirigiu-se à porta e ganhou o boulevard” (p.63-64).

[BUKOWSKI, Charles. Numa Fria. Editora: L&PM Pocket, Porto Alegre, 2013]