sábado, 21 de fevereiro de 2015

Manual do Otário

dinheiro, muito mais do que Deus, tornou-se, desde a Revolução Industrial, o grande mito da nossa época. E muitos sujeitos, mesmo os que pertencem à classe operária, rezam, diariamente, por suas bênçãos materialistas. Obcecados pela falsa ideia de que as fortunas se fazem com o suor do próprio rosto, estes pobres-coitados entregam suas almas ao sistema. Fazem 8 horas por dia, durante 35 anos, sem reclamar; chamam o patrão de senhor e, tão logo recebem o primeiro aumento, tratam de adquirir um carro usado. Estes sujeitos acreditam, assim como uma criança acredita em coelho da páscoa, que os bilionários se tornaram bilionários porque trabalharam muito, em média 60 horas por semana, sem esbanjar dinheiro, vivendo com o estritamente necessário, sem usar ou comprar artigos caros ou de luxo. Foi isto que um rapaz comentou numa rede social. Ele ainda disse “[...] acho muito simplista acusar investidores [do mercado financeiro] por ganhar dinheiro fácil, uma vez que a maioria dos ricaços é de primeira geração, ou seja, construiu sua riqueza do zero. Louvável também o trabalhador que luta por seu salário. O problema é que não temos uma cultura de poupança, de ganhar por mérito, de aperfeiçoamento. Pensamos somente no aqui e no agora”. O rapaz falava com tanta certeza que me colocou uma pulga atrás da orelha: “Então quer dizer que a culpa é toda minha?”
Logo, uma crise existencial tomou conta de todo o meu ser. Passei a me sentir um verdadeiro otário, passei a sentir culpa pela minha incapacidade, pelo meu status de pobre e, já no mesmo instante, passei a adorar sujeitos como Eike Batista, Chiquinho Scarpa e Paris Hilton, verdadeiros ícones do materialismo. Passei a acessar sites de fofocas. Comprei a última edição da Revista Caras. Aderi ao método judeu de finanças: guardar sempre um terço do que se ganha.
As coisas começaram a caminhar de tal forma que até as crônicas do Juremir Machado da Silva começaram a conspirar a meu favor. Numa, intitulada “Ser Bilionário no Mundo de Hoje”, ele disse “Saiu, a mais de um mês, um estudo sobre os mais ricos do planeta. Tratei de estudar o assunto. Ainda não desisti de ser bilionário. É só uma questão de tempo e dinheiro. Todo verão planejo entrar para o seleto grupo dos que controlam a grana. Depois, terminam as férias, volto a trabalhar e fico sem tempo para enriquecer. Tenho um ponto em comum com os detentores das maiores fortunas do mundo: sou do sexo masculino. Já é um começo. Sobre 2325 bilionários, 2039 são homens [...]. Minhas chances aumentam com outra característica dos bilionários: eles são casados (eu também). Mas diminuem quanto ao nível de estudo. A maioria possui poucos diplomas ou nenhum. Eu tenho vários. Chega a 35% o índice de bilionários que não terminaram o ensino médio. Já 42% só tem o ensino médio. Apenas 11% fizeram uma tese e embolsaram um diploma de doutorado. Por que eu fui estudar tanto?”
Brincadeiras à parte, o mito do ricaço, digamos assim, quer transformar os 99% da população mundial não-bilionária, num bando de alienados. O mito diz: poupe, trabalhe duro, idolatre o seu patrão, não estude, não abra a sua mente para novas ideias; e se, lá no final, quando você já estiver velhinho, a fortuna não tiver chegado, lembre-se de que a culpa foi sua, porque as oportunidades são iguais pra todos.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Os Sobreviventes

Acabei de ler o conto “Os Sobreviventes”, de Caio Fernando Abreu; que maravilha! Quanta teoria! quanto estilo! quanta beleza! Quanta mistura de sensações e sentimentos e sabores e sei lá o quê! As passagens do texto, por si só, nos revelam mil coisas; o leitor que, ao acaso, escolhesse um trecho qualquer, teria material para refletir durante horas. Por exemplo: “Sri Lanka, quem sabe? ela me pergunta, morena e ferina, e eu respondo por que não? mas inabalável ela continua: você pode pelo menos mandar cartões-postais de lá, para que as pessoas pensem nossa, como é que ele foi parar em Sri Lanka, que cara louco esse, hein, e morram saudade, não é isso que te importa?”. A gente consegue perceber o rancor, a ironia. Trata-se de um “casal” que, depois de tentar de todas as formas, “decidi”, enfim, pela separação, que só seria possível se um dos dois desaparecesse ou, no caso, se mandasse para o Sri Lanka.
"Mas tentamos tudo, eu digo, e ela diz que sim, claaaaaaro, tentamos tudo, inclusive trepar, porque tantos livros emprestados, tantos filmes vistos juntos, tantos pontos de vista sociopolíticos existenciais e bababá em comum só podiam era dar mesmo nisso: cama. Realmente tentamos, mas foi uma bosta. Que foi que aconteceu, que foi meu deus que aconteceu, eu pensava depois acendendo um cigarro no outro e não queria lembrar, mas não me saía da cabeça o teu pau murcho e os bicos dos meus seios que nem sequer ficaram duros”. Ela, num misto de mágoa e ódio, desabafa, põe tudo em cima dele, como se fosse um rio, como se exorcizasse um demônio.
Mas, depois de golpeá-lo, ela muda o tom, e passa a falar do seu próprio fracasso e, na medida em que revela suas derrotas, revela, também, a derrota de uma época (?): “Podia ter dado certo entre a gente, ou não, eu nem sei o que é dar certo, mas naquele tempo você ainda não tinha se decidido a dar o rabo nem eu a lamber boceta, ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois de Marcuse, depois Reich, depois Castañeda, depois Laing embaixo do braço, aqueles sonhos todos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50 em Paris, 60 em Londres ouvindo Beatles, 70 em Nova York dançando disco-music no Studio 54, 80 a gente aqui mastigando esta coisa porca sem conseguir engolir nem cuspir fora nem esquecer esse azedo na boca”.
Não havia no que se segurar, o mundo estava desabando e o melhor já havia passado. Restava sobreviver; sobreviver e só: “[...] claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo, a questão é onde, não nesta cidade escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim? ora não me venha com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei mais de cinquenta ácidos, fiz seis anos de análise, já pirei de clínica, lembra? você me levava maçãs argentinas e fotonovelas italianas”. Parece até que eles se gostavam, parece até que eles tentaram de verdade, só que, não deu. Não deu; as vezes não dá.
"[...] caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você pensa que pode escapar” – ela sentencia. “[...] mas não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais autodestrutiva do que insistir sem fé nenhuma?”
Seria o fim ou apenas um novo recomeço? Estaríamos vivos ou seríamos apenas os sobreviventes de uma catástrofe? Não sei, as perguntas nem sempre possuem respostas. “[...] ela puxa a descarga e vai me empurrando para a sala, para a porta, pedindo que me vá, e me expulsa para o corredor repetindo não se esqueça então de me mandar aquele cartão do Sri Lanka [...] que aconteça alguma coisa bem bonita com você, ela diz, te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em tudo outra vez, que leve pra longe da minha boca este gosto podre de fracasso, este travo de derrota sem nobreza, não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando. A chave gira na porta”.

[ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. In: Os Sobreviventes. Rio de Janeiro: 11°ed., Nova Fronteira, 2009, págs 25-29]

domingo, 8 de fevereiro de 2015

A ordem mundial é um absurdo

Para conseguir alguma coisa na vida, o assalariado tem de trabalhar 8 horas por dia, de segunda à sábado, durante 35 anos. O investidor esperto, ao contrário, escolhe uma aplicação e, sem ter que cumprir horário, vê seu capital crescer a passos largos e em tempo recorde.
Os fundos de previdência privada reajustados por índices de preços, por exemplo, em 2014 chegaram a render 18%; logo, um investidor que tivesse aplicado 1 milhão, teria ganho 180 mil. Com o dólar foi melhor. Em 28/01/2015 a moeda norte-americana era comprada por R$ 2,57, nove dias depois era vendida por R$ 2,78; logo, um investidor que tivesse aplicado 1 milhão, teria ganho quase 82 mil. E não para aí – com as ações da Petrobrás os resultados foram mais espetaculares ainda. Em 30/01/2015 os papéis da petrolífera brasileira valiam R$ 8,18, cinco dias depois eram vendidos por R$ 10,69; logo, um investidor que tivesse aplicado 1 milhão, teria ganho meros 306.842 mil reais.
O que um assalariado comum leva 35 anos para conquistar, um investidor arrecada em cinco dias: isso é justo? Do ponto de vista do capitalismo, sim; do ponto de vista humano, não. É por isso que Marx falava em revolução, é por isso que os Sex Pistols pregavam a anarquia, é por isso que os terroristas cortam cabeças: a ordem mundial é um absurdo: a nossa sociedade está edificada sobre uma base que favorece uma minoria em detrimento da maioria, sobre uma base que tira do pobre e dá ao rico.
Segundo a Revista Forbes Brasil, 150 bilionários detêm cerca de 13% do PIB do país. Entre eles estão Jorge Paulo Lemann, sócio da empresa 3G, dona de marcas como Budweiser, Burguer King e Heinz; Eduardo Saverin, co-fundador do Facebook; o bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus e Lina Maria de Aguiar, uma das herdeiras do Bradesco. São justamente estes sujeitos, donos de verdadeiras babilônias, que aplicam no mercado financeiro; são justamente estes sujeitos que andam de lambroghini, que viajam pra Paris, que saem nas capas de revista; são estes sujeitos e a estrutura que os protege, que pagam os baixos salários que mantêm os trabalhadores comuns acorrentados durante 35 longos anos; somos nós, em contrapartida, que consumimos o hambúrguer, a igreja e a rede social que as empresas deles produzem.

"Quem é maior: Deus ou o dinheiro? Respondem os ingleses que Gold (ouro) tem uma letra a mais que God (Deus)".

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Carona para o Trabalho

Quando saía para o trabalho, às cinco e meia da manhã, meu tio chegou.
- Aonde tu vai? – me perguntou, feliz.
- Trabalhar.
- Espera aí que eu te levo lá – ele estava de carona com um amigo.
Abri o portão e encontrei um homem escorado num Fiat Uno, segurando uma latinha de cerveja. Amistosamente, o homem, que se chamava Vanderlei, me cumprimentou:
- Tu é filho do Alemão?
- Sobrinho.
- Eu vou te dizer uma coisa, pessoa igual ao teu tio não existe, sempre que precisei do Alemão ele me ajudou, é um grande amigo, um grande homem, pra te dizer bem a verdade – ergueu o dedo – eu considero o teu tio como se fosse um irmão pra mim...
- Ele vai pra França, não é? – disse, pra mudar o foco do assunto.
- Merece... – e virou outro gole.
Neste momento mesmo, o portão se abriu:
- Diego, tu não empresta este moletom pro tio? – e me mostrou a blusa – semana que vem eu volto pra pegar o passaporte e te devolvo...
- Empresto – eu sabia que ele jamais me devolveria.
Embarcamos no carro e partimos.

- A mãe pensou que eu tivesse gastado o dinheiro da passagem...
- Quando tu vai, tio?
- Como é meu último dia em Torres, aproveitei pra festejar com os amigos – completou.
O carro seguia.
- Quando tu vai, tio? – repeti.
- Eu embarco hoje às duas da tarde em Porte Alegre e chego em São Paulo às oito da manhã.
- Um dia!
- Mas até lá – emendou – eu vou beber mais umas trinta gelada. E como eu não sou bobo – cutucou o Vanderlei – vou comprando de quatro em quatro, pra não esquentá – e começaram a rir.

Na tarde do dia anterior, eu e o meu tio havíamos conversado sobre a sua vida.
- E os teus quatro filhos?
- Eles não vão passar necessidade...
Seu pai fizera a mesma coisa com a minha avó; a história se repetia.
- Eu sei que eu sou errado – dizia, chorando – mas o que que eu vou fazer se eu vivo com uma mulher que eu não amo?

O carro dobrou a esquina.
Meu tio bebeu um gole enorme:
- Como dizia um amigo meu “se tu tá no inferno, dá um abraço no Diabo” – e deu risada.
...
- É aqui Vanderlei! – o carro estacionou, eu disse.
Estava cinco minutos atrasado.

Na cozinha do hotel os funcionários trabalhavam em silêncio: o Jonathan fatiava abacaxis, a Jane espremia laranjas, a Tia Neuza assava pães.
Não havia tempo para tentar entender, comecei a fatiar queijo.