quinta-feira, 29 de maio de 2014

A Grande Transformação

Uma cliente, que há cinco anos investirá 15 mil, apareceu hoje na agência para fazer o resgate do dinheiro. Fiquei impressionado com o rendimento: mil por ano.
Logo pensei nos donos de lancherias, nos garçons, nos frentistas, nos mecânicos, nos professores, nesta gente toda que tem de ”suar a camisa” debaixo de sol, debaixo de chuva, sob o olhar antipático do patrão, oito horas por dia, pra ganhar um salário mirrado, que mal e porcamente dá pro básico; pensei também nos homens ricos, naqueles que ganham muito mais do que conseguem gastar, sem derramar um gota sequer de suor; comparei estas duas classes de pessoas, a natureza de seus rendimentos; conclui, sem sombra de dúvidas, que a vida é mais fácil para quem investe no mercado financeiro.
Imagine, ó leitor, quem tem 150 mil para aplicar? e quem tem 1,5 milhão? e quem tem 150 milhões? e quem tem 1,5 bilhões? viveria apenas dos rendimentos, sem nunca mais precisar vestir um uniforme de trabalho, viajando à passeio pelo mundo afora, comendo do bom e do melhor? Sim, basta fazer a conta. Tomando-se como parâmetro o exemplo do primeiro parágrafo, para um investimento de 150 mil, teríamos um retorno de 50 mil; para 1,5 milhão, 5 milhões... para 1,5 bilhão, portanto, 500 milhões. Dinheiro suficiente para comprar um iate, uma casa no campo, uma casa na praia, um apartamento na cidade, um jatinho particular, uma ferrari, uma lamborghini, um porsche, uma harley-davidson, uma viagem à Paris, uma viagem à Tóquio, uma viagem à Nova Yorque... 500 milhões é dinheiro suficiente pra comprar tudo isso e mais qualquer outra coisa que você quiser, é dinheiro suficiente pra viver 70 anos sem ter que trabalhar um único dia na vida.

E o mundo gira assim a muito tempo, a gente é que não sabe: “Orçamentos e armamentos, comércio exterior e matérias-primas, independência nacional e soberania eram, agora, funções da moeda e do crédito. Já no último quarto do século dezenove, os preços mundiais das mercadorias constituíam a realidade principal das vidas de milhões de camponeses continentais; as flutuações do mercado monetário de Londres eram anotadas diariamente pelos negociantes de todo o mundo, e os governos discutiam os planos para o futuro à luz das situação dos mercados de capitais mundiais. Só um louco duvidaria de que o sistema econômico internacional era o eixo da existência material da raça humana” (p. 35).

[POLANIY, Karl. A Grande Transformação. Rio de Janeiro: Campus, 1980, 306 páginas]

sábado, 24 de maio de 2014

O Mundo Sem Teorias

A gente liga a tevê e a formalidade habitual dos noticiários avisa, em tom profético: “devido à globalização, um problema na economia de um determinado país pode afetar a economia como um todo”. Mas, para Dona Teodolina, que hoje completará 70 anos, isso é conversa fiada; para ela, o único problema que pode haver é nome-feio, é um filho não aparecer pro almoço de domingo, é mãe solteira. Para Dona Teodolina, não há relação alguma entre a vida que se leva e o mercado financeiro global.
Na esquina, a mesma coisa. Quando as vendas pioram, Seu Zé, dono de barraquinha de cachorro-quente, diz, nas conversas surgidas por acaso, que antigamente se vendia mais, que o preço das coisas subiu muito, diz, como quem diz o que pensa, pra chamar clientes, e, no auge do debate, Seu Zé se arrisca e sentencia “a crise vai acabar com os negócios”. O cliente não sabe, mas Seu Zé sabe – amanhã a conversa continua, amanhã mais um cachorro sai.
Na universidade, o professor discursa sobre o chamado “pensamento científico”, mas o aluno, com a autonomia de quem ainda é jovem, formula suas próprias teses, baseadas no conhecimento prático, ou na leitura dos livros não-convencionais.
No fundo, pouco importa se os investidores estão sujeitos ao risco associado à interdependência entre os diversos mercados financeiros capitalistas, pois isso não é palpável, não é tangível; no fundo, o que Dona Teodolina, Seu Zé e os universitários querem é viver a vida, tocar, sentir, cada um a seu modo, agora, nesse exato momento, sem a interferência de vozes do além.

Jack Kerouac falava sobre estas coisas, sem necessariamente tocar no assunto: “O bar ideal não existe na América. Um bar ideal é algo fora do nosso alcance. Em 1910 um bar era um lugar onde os homens iam se encontrar durante ou depois do trabalho e tudo o que havia era um longo balcão, corrimãos de metal, escarradeiras, uma pianola para o fundo musical, uns espelhos e barris de uísque a dez centavos a dose ao lado de barris de cerveja a cinco centavos a caneca. Agora tudo o que há são enfeites cromados, mulheres bêbadas, veados, barmens hostis, proprietários angustiados espreitando nas portas preocupados com seus bancos de couro e com a polícia; gritaria em momentos inoportunos e um silêncio mortal quando entra um estranho” (p.282).

[KEROUAC, Jack. Pé na Estrada. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2011. Tradução de Eduardo Bueno e Lúcia Brito]

sábado, 17 de maio de 2014

O que penso eu do mundo?

Penso muitas coisas, obviamente. Quantas destas coisas são importantes eu não sei, mas como todo bom cidadão – que vai à missa aos domingos, que guarda dinheiro no banco, que ainda escreve cartas românticas – vou abrir o debate.
Pois bem, eu penso que esta vida computadorizada, esta vida das redes sociais, esta vida de “mercadorias de todos os tipos” nos rouba a paz, os encontros interiores; as coisas, nesse ambiente ultra-tecnológico, se lançam umas contras’outras, não se pode mais ficar parado, não se pode mais observar, não se tem mais sossego, portanto, penso eu, que, muito mais saudável do que seguir as regras desumanas impostas pelo sistema, é sair para tomar um café; aliás, comer é um prazer sem fim, ter um amigo, conversar, dar risadas, recordar a infância, ler livros, assistir um filme, praticar esportes, namorar... mesmo sabendo que nem tudo são rosas.
Pensar no mundo é como pensar em razões e fins. Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, sabia disso. Para ele:

Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais do que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
[...]

A vida é assim; e quando a resposta se esconde, o melhor é não pensar, é mudar o foco, é relaxar, então, depois de um bom tempo, quando a gente já nem se lembra mais daquele problema antigo, a resposta chega, sem avisar, sem bater à porta, levando embora aquela dúvida cruel, aliviando o sobrepeso; às vezes é assim que o mundo funciona.

O mistério das coisas? Sei lá o que é o mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
[...]

[PESSOA, Fernando. Poesia Completa de Alberto Caeiro. In: Guardador de Rebanhos ( Poema V). São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p.23-25]

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Senna como Consciência de Mundo

Airton Senna não foi apenas um piloto de F-1, ele foi muito mais do que isso, Airton Senna foi um herói. Ele não corria apenas contra seus adversários, fora das pistas Senna enfrentava os políticos, os patrocinadores, enfim, poderosos de todas as espécies, a “cede pelo dinheiro”, a prática antidesportiva, e, mais do que isso, o fato de ser tupiniquim, de ser um “da Silva”, numa época em que o país enfrentava problemas socioeconômicos gravíssimos, numa época em que ser brasileiro era motivo de vergonha. Mas Airton não se intimidou, venceu dentro e fora da pista e, na volta após a bandeirada, exibiu a bandeira verde e amarela, com orgulho, para que todos – ricos, pobres, negros, brancos, sulistas, nortistas, cristãos, muçulmanos, pilotos de corrida, advogados, médicos, jogadores de futebol, adultos, crianças, idosos, homens, mulheres – todos, sem tirar nem pôr, soubessem quem ele era: uma consciência de mundo.
Sim, alguém que possuía amor pela verdade, que era capaz de enxergar além das aparências, que era capaz de pensar em termos coletivos, que era capaz de ultrapassar os limites do inimaginável, que era capaz de suportar muito mais do que se pode suportar, alguém que era carregado nos braços pelo povo, alguém que era a própria esperança do povo, o motivo de orgulho de uma nação, a matriz-energética do pai de família – que acorda cedo todos os dias e sai em busca do sustento, que volta cansado à noite, que não descansa no feriado, que apenas sobrevive, mas que tem fé na vitória – alguém que era um exemplo para a humanidade, alguém que, como diz a Bíblia, era capaz de mover montanhas.
Em 1989, no Japão, se Alain Prost ganhasse a corrida ganharia o campeonato; na largada, Senna caiu pra segundo, mas, implacavelmente, perseguiu o francês, volta por volta, palmo por palmo, milésimo por milésimo, até que a oportunidade apareceu; Airton retardou a freiada e, após a curva à direita, ultrapassaria Prost, o adversário, no entanto, propositalmente deixou que seu carro se chocasse contra o do brasileiro e os dois saíram da pista; Senna ainda conseguiria voltar, amparado pelos fiscais de prova que empurraram a sua McLaren rumo a uma vitória sensacional; porém, nos bastidores, devido a uma decisão política, Airton foi desclassificado e o título acabou ficando com o francês. A má-fé do adversário não havia sido levada em conta, era uma escolha contra o esporte; Balestre, que comandava a organização na época, era amigo pessoal de Alain e, com a intenção de “dar uma lição definitiva” no brasileiro, ainda o ameaçou com a suspensão do campeonato mundial de 1990, caso Senna não se desculpasse publicamente com todos, além de uma multa de 100 mil dólares. Airton, então, pensou em abandonar a F-1 – não lhe cabia o papel de idiota. E o teria feito se o dono de sua equipe, Ron Dennis, não tivesse inventado uma maneira de contornar a situação através de uma “nota oficial”, onde, supostamente o brasileiro se desculpava. Era mentira.
A resposta verdadeira viria na pista; o quadro parecia obra dos deuses: um ano depois, no Japão outra vez, na mesma curva, o mesmo acidente, e os dois carros – a Ferrari de Prost e a McLaren de Senna – ficaram atolados na caixa de brita, só que, dessa vez, o título era nosso. “Aqui se faz, aqui se paga” – Airton dera o troco.
O narrador televisivo, no auge da emoção, descreveu o episódio, logo após o choque:
- Senna sai do carro... e dá as costas pra Prost.
Parecia uma história de cinema, mas era real: o Brasil comemorava; o mundo inteiro comemorava.

[Inspirado no documentário Senna: o brasileiro, o herói, o campeão. Direção de Asif Kapadia e roteiro de Manish Pandey, 2010]

quinta-feira, 1 de maio de 2014

O Mito do Desenvolvimento Econômico

Em termos de nações, seria possível um capitalismo igualitário e humano? É claro que não! Se as coisas funcionassem assim, o maior problema do mundo, hoje, seria: de que maneira desenvolver a África? de que maneira melhorar as condições de vida do continente mais miserável do planeta? Mas a questão não é essa, as grandes potências estão preocupadas consigo mesmas, com a saúde de suas próprias economias, e as questões externas só lhes são importantes na medida de seus interesses.
Ao longo dos 250 anos que separam a Primeira Revolução Industrial dos dias de hoje, os países se sucederam na hierarquia capitalista, circulando entre o centro, a semiperiferia e a periferia, o que confere um caráter heterogêneo à formação do mercado mundial, como bem observou Wallerstein: “dentro da economia-mundo capitalista todos os estados não podem se ‘desenvolver’ simultaneamente por definição, já que o sistema funciona por ter núcleos desiguais e regiões periféricas”.
As economias desenvolvidas, porém, atingem a maturidade e, depois disso, não conseguem crescer mais do que 2 ou 3 por cento ao ano; as economias subdesenvolvidas, por sua vez, devido ao fato de serem subdesenvolvidas, conseguem taxas bem mais elevadas e, nos anos 2000, conseguiram um índice três vezes maior do que o observado na maior economia do mundo, os EUA. Devido a esse quadro, alguns economistas acreditam estar diante de uma mudança no “centro de poder do sistema”, e que um grupo de emergentes – Brasil, Rússia, Índia e, principalmente, China – conhecido como BRIC, desbancará os norte-americanos. Mais ainda: acredita-se que as rendas dos países pobres rapidamente alcançarão a dos países ricos, eliminando a situação de subdesenvolvimento econômico daqueles.
Entretanto, após a taxa média de crescimento do PIB dos mercados emergentes ter alcançado o pico de 8,7%, em 2007, despencou para 4% em 2013. A pergunta é: as economias periféricas possuem a capacidade de ter um crescimento rápido e duradouro o suficiente pra ascender ao mundo desenvolvido? ou isso é um mito?

[Referência: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ In: Declínio dos Mercados Emergentes, publicado em 08/03/2014]