domingo, 23 de fevereiro de 2014

A guerra de cada dia

Tudo é objeto de disputa: lutamos pelo melhor pedaço de bolo, pelo melhor emprego, pelo melhor momento, pela viagem dos sonhos, por uma mesa no restaurante, pela atenção da família, pelo sucesso profissional, pelo ar que se respira, pela roupa que se veste, pelo último pacote da promoção, pela bolsa do governo, pelo olhar da menina, pela lambida do cachorro, pela vaga no estacionamento, enfim, lutamos.
O metrô de São Paulo comprova isto – gente pulando a janela, gente se espremendo, gente caindo, gente passando mal, gente sendo pisoteada – o mais forte vence o mais fraco. É o que Keynes chamava de “espírito animal”: um impulso espontâneo para a ação. É a famosa frase de Hobbes “o homem é o lobo do homem”. É a seleção natural de Darwin: o que se adapta mais rápido, vence. É fácil de entender. Um cachorro não mata outro por vaidade, o homem sim; um pinguim não mata outro por inveja, o homem sim; é matemática!
“- Que é que você acha da guerra?
- Não tem nada de errado com a guerra – respondi.
- Ah é?
- É. Quando você entra num táxi, isso é guerra. Quando você compra um pão, é guerra. Quando você compra uma puta, é guerra. Às vezes eu preciso de pão, táxi e puta.
[...]
- Não tem nada de errado com a guerra; ela é uma 
extensão natural da nossa sociedade” (p.132).

[BUKOWSKI, Charles. Numa Fria. Editora L&PMPOCKET, 2013]

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Contra-a-corrente

Na Idade Média o homem comum não podia questionar o estabelecido, ele nascia pobre e era explorado, porque, segundo a ideologia da época, Deus quisera assim. O conhecimento, que poderia servir-lhe como fonte de inspiração para mudanças, era guardado a sete-chaves pelos detentores do poder e, deste modo, sem ter acesso às grandes obras de Sócrates e Platão, o homem comum agonizou durante séculos na mão de uma meia dúzia de mal-intencionados.  
Hoje os tempos são outros e, no entanto, a história se repete – o homem comum continua sem questionar. Ainda há opressão, é verdade – a mídia manipula, a Igreja manipula, a polícia bate, o Estado nem sempre é justo – entretanto, o acesso ao conhecimento não é mais restrito. Qualquer pessoa, seja ela quem for, tem acesso a livros. Marx, Webber, Darwin estão aí, para serem lidos. Só que ninguém lê.
O conforto material proporcionado pela sociedade de consumo tornou o homem medíocre – questionar pra quê? Muito mais fácil é seguir a corrente universal das coisas, “ser farinha do mesmo saco”.
Ferreira Gullar tinha uma visão menos ácida: “[...] também pode estar errado quem defende os valores consagrados e aceitos. Só que, em muitos casos, não há alternativa senão defendê-los. E sabem por quê? Pela simples razão de que a sociedade é, por definição, conservadora, uma vez que, sem princípios e valores estabelecidos, seria impossível o convívio social. Uma sociedade cujos princípios e normas mudassem a cada dia seria caótica e, por isso mesmo, inviável. Por outro lado, como a vida muda e a mudança é inerente à existência, impedir a mudança é impossível. Daí resulta que a sociedade termina por aceitar as mudanças, mas apenas aquelas que de algum modo atendem a suas necessidades e a fazem avançar”.

[GULLAR, Ferreira. Dialética da Mudança. Folha de São Paulo, 6 maio de 2012, p. E10]. 

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Ideologias Humanas

Há muitas ideologias soltas por aí, mas elas são legítimas? Ser cristão, por exemplo, significa o quê? Significa se casar e viver com a mesma pessoa até a morte, não roubar, não cometer adultério, trabalhar e ir pra casa, acordar cedo, descansar aos domingos, frequentar a igreja, amar ao próximo como a si mesmo, ler a Bíblia, enfim, “ser cristão” é muito mais do que estamos acostumados a ver por aí. Tudo bem. E ser comunista, o que significa? Significa pensar em revolução, adorar Chê Guevara e Fidel Castro, ler Marx, não consumir, literalmente, não beber coca-cola, não possuir conta em banco, não possuir carro, se associar a algum partido de extrema esquerda, enfim, “ser comunista” é muito mais do que estamos acostumados a ver por aí. Tudo bem. E ser burguês, o que significa? Significa montar uma empresa privada e contratar um monte de operários, pagando-lhes um salário de fome, o menor possível, e consumir tudo o que existe de bom e de melhor – roupas de marca, automóveis de luxo, jóias caras  – escutar música clássica, morar num palácio, falar três línguas e nunca se misturar com o povão, enfim, “ser burguês” é muito mais do que estamos acostumados a ver por aí. 
O que a gente vê por aí, na verdade, são meias-ideologias, são operários aburguesados, são comunistas conformados, são cristãos pecadores, enfim, o que a gente vê por aí não é legítimo, é uma enorme mistura de várias coisas. Hoje em dia o cristão se separa e casa de novo, o comunista anda de carro, o burguês escuta funk – as ideologias perderam a pureza, vivemos a hipermodernidade.

“A sensação de insegurança invadiu os espíritos; a saúde se impõe como obsessão das massas; o terrorismo, as catástrofes, as epidemias são regularmente notícia de primeira página. As lutas sociais e os discursos críticos não mais oferecem a perspectiva de construir utopias e superar a dominação. Só se fala em proteção, segurança, defesa das ‘conquistas sociais’, urgência humanitária, preservação do planeta. Em resumo, de limitar estragos”.

[LIPOVETSKY, Gilles. Os Tempos Hipermodernos]

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Fundamentos do Materialismo

As grandes ideias de consumo do século XX são norte-americanas: o carro popular, o supermercado e o shopping center. Em qualquer cidadezinha que se vá, em qualquer canto do mundo, se percebe que deu certo – eles criaram e propagaram “o modo americano de viver”.
Não há fronteiras, o mudo inteiro aderiu. Você entra no supermercado e escolhe o que quiser, paga com cartão ou dinheiro, tanto faz, e “se preferir, entregamos em casa”, diz a atendente. No shopping, a mesma coisa, não há problemas, não há trânsito, não há sol, não há chuva, não há pedintes, tudo é perfeito, as vitrines expõem o melhor da moda, os banheiros são limpos, há segurança, praça de alimentação, gente bonita, escada-rolante e, dobrando o corredor, à direita, um carro à venda, no meio do salão. O vendedor se aproxima e diz “ele pode ser seu”. Então, depois de se imaginar dirigindo a máquina, a resposta “ele será meu” – você está apaixonado.
Agora nada mais importa – família, Deus, viagem de férias, filhos, moral, ética – são questões secundárias, as ideias de consumo invadiram a sua mente e se apropriaram do seu corpo e da sua alma. Só Marx consegue explicar as causas disso: “[...] a forma madeira é alterada, ao fazer-se dela uma mesa. Contudo, a mesa continua a ser madeira, uma coisa vulgar, material. Mas a partir do momento em que surge como mercadoria, as coisas mudam completamente de figura: transforma-se numa coisa a um tempo palpável e impalpável. Não se limita a ter os pés no chão; face a outras mercadorias, apresenta-se, por assim dizer, de cabeça para baixo, e da sua cabeça de madeira saem caprichos mais fantásticos do que se ela começasse a dançar”

[MARX, Karl. O Capital. Livro I, Volume I, Secção IV: O Fetichismo da Mercadoria e o Seu Segredo]