quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Sobre a Técnica de Bukowski

No prefácio da obra “Numa Fria” está escrito: “De estilo extremamente livre e imediatista". E foi justamente esta a impressão que me ficou, ao ler os contos. Bukowski “vai colhendo as primeiras informações”, “os primeiros sentimentos”, “as vontades”, e, sem lapidação, "vai improvisando" os parágrafos, um após o outro, artisticamente. Não há volta em seus textos, só há frente; eles seguem sempre em progressão, orientados pelo momento. A interpretação jamais acontece – a filosofia do “Velho Safado” é, em essência, descritiva.
Ele utiliza-se de palavrões “merda, porra”, fala de sexo como se falasse de futebol “tira a mão da minha xoxota", parece não se importar com o mundo "só precisavam de sono, lençóis limpos, comida, bebida e pomada para hemorroidas" e, apesar de não servir de exemplo pra ninguém, “o Maldito” ainda é capaz de compreender o serumano de uma forma a fazer inveja a muitos “certinhos”: “Nós somos nossos próprios quadros”. Deriva daí o seu sucesso – Bukowski é capaz de transformar o dia-a-dia em verso, de pegar as bebedeiras triviais, a vontade de fazer sexo, as angústias adolescentes e transformá-las em arte; Bukowski é capaz de afrontar a sociedade sem se perturbar, para ele “o homem era a cloaca do universo”. Deriva daí o seu sucesso – uma obra com a qual as gerações, de todos os tempos, se identificam:

O telefone tocou de novo.
[...]
Era a poetisa Janessa Tell. Tinha um belo corpo, mas ele nunca fora para a cama com ela.
-Eu gostaria que você viesse jantar amanhã de noite.
- Estou firme com a Lu – ele disse. Nossa, pensou, sou fiel. Nossa, pensou, sou um cara legal. Nossa.
- Traga ela junto.
- Acha que seria sensato?
- Pra mim, tudo bem.
- Escuta, eu ligo pra você amanhã. Pra confirmar.
Desligou e tornou a estender-se. Durante trinta anos, pensou, eu quis ser um escritor, e agora sou um escritor, e que é que isso significa?
O telefone tornou a tocar. Era o poeta Doug Eshlesham.
- Hank, querido...
- Sim, Doug?
- Estou duro, querido, preciso duns cinco dólares. Me passa uns cinco.
- Doug, os cavalinhos acabaram comigo. Estou duro, absolutamente.
- Oh – disse Doug.
- Desculpe, querido.
- Bem, tudo bem.
Doug desligou. Doug já lhe devia quinze paus. Mas ele tinha os cinco. Devia ter dado a Doug. Provavelmente, Doug estava comendo comida de cachorro. Não sou um cara muito legal, ele pensou. Nossa, não sou um cara muito legal, enfim.
Estende-se na cama, pleno, em sua inglória (p.22).

[BUKOWSKI, Charles. Numa Fria. Editora: L&PM Pocket, Porto Alegre, 2013]

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Do que o mundo é feito?

Os físicos diriam que é feito de uma partícula elementar chamada de “bóson de higgs”; os políticos diriam que é feito de acordos; alguns economistas diriam que é feito de trabalho; os crentes diriam que é feito do “amor de Deus”. Enfim, as opiniões variam, não há uma verdade absoluta – tudo é relativo.
Entretanto, quando deixamos o alagado campo das ideologias e dos diferentes tipos de conhecimento para ingressarmos no firme terreno do consenso, constatamos que as opiniões variam na forma, mas que se parecem em essência: são idéias. Basta olhar em volta. Exemplos: a semana tem sete dias porque, segundo os cristãos, Deus construiu o mundo e, no domingo, descansou; dirigir e beber são práticas que não combinam, pois, de acordo com os cientistas, o álcool diminui os reflexos; a oferta não cria a sua própria demanda, por isso, dizem os keyneisianos, o crescimento da economia e, consequentemente, o bem-estar da população, dependem das “expectativas dos empresários”. As coisas que parecem ter surgido na Terra e na vida das pessoas como que por encanto, na verdade são o resultado de um processo que, no fundo, é uma ideia. Até o Estado, tal como o conhecemos hoje, é o resultado de um processo de reflexão: os reis e os sacerdotes feudais e absolutistas que na Idade Média se diziam “eleitos por Deus”, foram substituídos pelo “direito ao voto”.
Em última análise, o homem é um escravo do seu próprio pensamento, como diria Rousseau: “O primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: ‘isso é meu’, e encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade em que vivemos. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas (...), tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Fugi às palavras desse impostor (...) a terra não é de ninguém’” (p.84-85).

[ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo, Ática, 1989]

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Greve dos Bancários

As estatísticas mostram que sem a greve os bancários hoje estariam “comendo o pão que o Diabo amassou”.
Nos anos do governo FHC, quando o movimento não possuía ainda uma unidade sólida, as perdas reais de salário foram significativas, mais na esfera pública do que na privada:
CAIXA ECONÔMICA
PERÍODO
REAJUSTE
INFLAÇÃO
GANHO REAL
1995-2002
26,94%
82,49%
-55,55%

BANCO DO BRASIL 
PERÍODO
REAJUSTE
INFLAÇÃO
GANHO REAL
1995-2002
33,7%
82,49%
-48,79%

BANCOS PRIVADOS
PERÍODO
REAJUSTE
INFLAÇÃO
GANHO REAL
1995-2002
72,8%
82,49%
-9,49%

Como se observa, houve uma forte redução nos salários reais da categoria. No caso da CAIXA, em especial, o poder de compra de seus funcionários foi reduzido em mais da metade durante os anos de neoliberalismo, quando se pregava o “Estado mínimo” na economia. Esta tendência só se inverteu quando a Esquerda assumiu o poder, em 2002, com Lula e, principalmente, quando os bancários, indignados, se unificaram e, a partir de 2003, passaram a fazer greve nacional, de grande repercussão, conduzida por uma “mesa única” de negociações. Não por acaso, a partir de 2004, a categoria deu guinada nos reajustes e, há nove anos, conquista aumentos reais:
BANCOS PRIVADOS, BANCO DO BRASIL E CAIXA
PERÍODO
REAJUSTE
INFLAÇÃO
GANHO REAL
2004-2012
61,0%
49,25%
+11,75%

As coisas funcionam assim, quem não se organiza, quem não reivindica os seus direitos, acaba ficando sem eles. Veja o exemplo dos carteiros, veja o exemplo dos professores, veja o exemplo dos policiais militares, gente que trabalha que nem bicho pra ganhar um salário de fome.
Graças a Deus a Constituição nos permite a greve. Graças a Marx e suas idéias revolucionárias de mobilização da classe trabalhadora, hoje temos direito de receber um salário melhor ou de, no mínimo, reivindicá-lo. Pra mim, as palavras do filósofo alemão soam tão atuais quanto os apelos midiáticos das inovações tecnológicas recentes: “Proletários do mundo, uni-vos!”.

sábado, 5 de outubro de 2013

Sobre a Técnica de Dostoievski

A obra Crime e Castigo, 
publicada em 1866, é considerada por muitos como o “romance dos romances”. Tentando entender o porquê disto, me utilizarei de uma versão sintetizada do texto (“Edições de Ouro”, Rio de Janeiro, n° 1727), com 271 páginas, muito bem traduzida por Carlos Heitor Cony.
O estilo da obra não chega a ser original. Dostoievski escreve “pensando em uma peça de teatro” e, assim, o literato russo “vai tramando as cenas”, “vai misturando as histórias”. Algo semelhante já havia sido feito por Shakespeare, centenas de anos atrás. Carlos Heitor Cony até faz uma observação a respeito: “Não se pode esquecer que o autor pagou pesado tributo ao modismo literário de sua época, quando a influência de uma subliteratura francesa (notadamente a de Eugene Sue) contaminava os escritores do mundo inteiro. E uma das grandes perguntas da história da literatura reside justamente nisso: como escritores que imitavam poderiam ter influído de forma tão profunda um dos maiores escritores da humanidade?”. O próprio Carlos Heitor dá a resposta: “[...] dentro de uma técnica obviamente romântica, Dostoievski conseguiu impor o seu gênio dramático, a sua insatisfeita obstinação em fazer da alma uma espécie de corpo à parte que vive, sofre e se redime numa permanente tragédia consigo próprio e com o mundo”.
Ou seja, com conteúdo o escritor russo superou uma técnica pouco original. Mas esta é só uma parte do debate. Mesmo utilizando-se de uma estrutura literária que já existia, Dostoievski conseguiu ser criativo, reinventando ou, no mínimo, revigorando o estilo que ele havia imitado. Em uma das cenas finais de Crime e Castigo, o autor russo insere “o limite da emoção humana”, não apenas uma, mas três vezes. Insere a tensão de um estrupo, de um assassinato e de um suicídio, sem, no entanto, deixá-los acontecer, levando o leitor ao êxtase. Eis o seu gênio: “Olhava-a com selvagem decisão, com os olhos inflamados.Dúnia compreendeu que ele antes morreria do que a deixaria – fraca, largou o revólver.
- Deixa-me! – disse Dúnia, implorando.
Svidrigailov estremeceu.
- Então não me quer?
Dúnia moveu negativamente a cabeça.
- E... não poderá? Nunca?
- Nunca! – murmurou Dúnia.
Houve um momento de luta na alma de Svidrigailov, enquanto olhava para Dúnia com a expressão de dor.
- Aqui tem a chave – tirou-a do bolso esquerdo do casaco. – Pegue-a e saia imediatamente [...]. 
Svidrigailov permaneceu ainda de pé junto da janela durante uns minutos. Viu o revólver que Dúnia largara ali caído, junto da porta. Era um revólver pequeno, de bolso, de três tiros, de fabricação antiga. Ainda lhe restava uma bala. Refleti um instante, guardou a arma no bolso, pegou no chapéu e saiu.
Passou no quarto de Sônia, deu-lhe três mil rublos e disse que ia pra América [...]” (p. 254-255).