quarta-feira, 30 de maio de 2012

Jean-Paul Sartre

Gabriel García Mârquez impressiona pelo enredo, Hemingway pela discrição narrativa, Sartre pela filosofia. É possível ler “Cem Anos de Solidão” sem intervalos devido à boa cadência da obra; “O Velho e o Mar”, por sua vez, se lê devagar, porém, com breves pausas; já “A Idade da Razão” exige longas rupturas reflexivas.
A obra começa com um pedido:
- Me dá qualquer coisa, patrãozinho, tou com fome.
- Não será sede que você tem? – indagou Mathieu.
A conversa se desenrola e o sujeito convida “o patrão” para um trago:
- Te ofereço um rum.
- Hoje não.
Mathieu afastou-se com um vago remorso. Houvera uma época em sua vida em que deambulava pelas ruas, pelos cafés, como todo mundo, o primeiro cara podia convidá-lo. Agora, tudo isso estava acabado. “Estou velho” – pensou (p.13-15).
Com esta passagem Sartre propõe uma reflexão a cerca do verdadeiro sentido da liberdade: Mathieu era livre, no entanto, uma sensação estranha impedia-o de se sentir assim. Por quê?
O mesmo sentimento se repete, num bar, no dia seguinte:
- Aí esta o champanha – disse ela alegremente.
Mathieu pegou a garrafa e pensou: “Trezentos e cinquenta francos”. O sujeito que o abordara na véspera, na Rua Vercingetorix, também estava liquidado, porém, modestamente, sem precisar pagar trezentos e cinquenta francos por um champanha. Mathieu teve nojo da garrafa: “Fede a vinho tinto barato”. O dancing inteiro pareceu-lhe um pequeno inferno, leve como um bolha de sabão, e ele sorriu.
- De que está rindo? – indagou Boris, rindo também de antemão.
- Estou me lembrando de que eu também não gosto de champanha.
Puseram-se a rir os três.
- Somos gozados! – disse Boris.
Acrescentou:
- Pode-se jogar no balde de gelo quando o garçom não estiver olhando.
- Se quiserem – disse Mathieu.
- Não – atalhou Ivich -, eu quero beber; eu bebo toda a garrafa, se ninguém quiser.
O garçom serviu e Mathieu levou melancolicamente o copo aos lábios (p.208-209).
Era como se os personagens sartreanos existissem pela metade, atormentados pela dificuldade de escolha, até mesmo de uma escolha aparentemente simples: comprar ou não o champanha? A liberdade, ou o que se fazia dela, neste caso, se assemelhava ao cárcere.
Nesta mesma noite, o filósofo francês, através de seu personagem Mathieu, resolve, teoricamente, o dilema: Havia pessoas que não existiam, eram vapores, e outras que existiam demais. O barman, por exemplo. Pouco antes fumava um cigarro, vago e poético como um jasmineiro; agora acordara, era demasiado barman, sacudia o shaker, abria-o, escorria a espuma amarela nos copos, com gestos de uma precisão supérflua. Representava o papel de barman. “Talvez não possa ser de outro modo; talvez seja preciso escolher: não ser nada ou representar o que é” – concluiu (p.213-214).
(Trechos levemente adaptados).

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Poetas Marginais

Chama-se de “poeta marginal” o versejador que não é Mário Quintana, Manuel Bandeira, Ferreira Gullar, ou seja, o versejador desconhecido. Segundo o livro de Português e Literatura para o ensino médio, esta vertente literária surgiu no início da década de 1970 em resposta ao “bloqueio sistemático das editoras, que consideravam que não era lucrativo publicar poetas desconhecidos”. Assim, ainda sem o auxílio da internet de massa, a poesia marginal apareceu, primeiro, “em pequenos livros mimeografados ou impressos por outros processos [...]. Por estarem à margem das editoras, serem produzidos e vendidos pelos próprios autores, deu-se a eles o nome de marginais.
Conheci um destes na edição de 2005 do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Caminhava pela zona do Cais, enquanto esperava o horário de uma palestra sobre globalização e capitalismo, quando ouvi os primeiros versos:

“Lula subiu no parlatório
Depois subiu escadas pomposas, aviões reservados a poucos, elevadores exclusivos.
Subiu nas alturas onde se fala mais do que se escuta.
Subiu nas alturas onde poucas vozes têm eco.
Mas Lula subiu sozinho.

Tento ajeitar meu coração para que ele continue batendo.
Lula subiu sozinho.
[...]”

(BENSUSAN, Hilan. “Segunda parte: A falta que uma classe faz”. In: Comunista. Campinas, Editora Komedi, 2005, p.105).


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A instantaniedade com que a internet permite ao ser humano encontrar todo tipo de informação exige questionamento: de quê modo tirar o melhor proveito disto? Os blog’s dos poetas marginais, na minha opinião, representam uma forma de bom uso desta tecnologia.
Por não ser vendável, o gênero permite ao escritor um sentimento mais profundo, calcado nas primeiras impressões do íntimo, logo, mesmo que não tenha o refinamento literário dos grandes mestres, terá, sempre, o desejo mais verdadeiro, isto é, o desejo de alguém que escreve, antes de tudo, pela necessidade de fazer parte de um mundo melhor:

Crer ou não crer
Não quero acreditar apenas no óbvio
No realisticamente perfeito
No esperado.
Deixem me concentrar no lúdico
No que dificilmente será
Mas que também pode ser.
Enquanto restar-me esperança
Acreditarei no impossível
E em toda insensatez.
Alguém tem que acreditar nestas coisas.
Do contrário, o mundo seria
Demasiadamente simples
Milimetricamente correto
E totalmente sem graça.

(BECK, Pascale Terra. Crer ou Não Crer. In: Pés i Mundos. Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro: CORAG, 2000, 70p.).

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Gabriel García Mârquez

Nesta passagem de “Cem Anos de Solidão”, o escritor colombiano descreve uma família em crise. Meme, a filha adolescente, desenvolvera um duplo caráter: “A sua felicidade estava no outro extremo da disciplina, nas festas ruidosas, nos fuxicos de namoro, em trancar-se prolongadamente com as amigas em cantos onde aprendiam a fumar e conversavam assuntos de homem, e onde uma vez passaram a mão em três garrafas de rum e acabaram nuas, medindo e comparando as partes do corpo”. O seu dualismo, como se vê, pendia mais para a rebeldia do que para a disciplina. Mas, apesar de autodestrutivo, era questionador e, portanto, inteligente. “Tinha passado duas horas tremendas no quarto de uma amiga, chorando de rir e de medo, e no outro lado da crise encontrara o estranho sentimento de valentia que lhe faltara para fugir do colégio e dizer à mãe, com estas e com outras palavras, que ela podia muito bem tomar uma lavagem de clavicórdio. Sentada na cabeceira da mesa, tomando um caldo de galinha que lhe caía no estômago como um elixir de ressurreição, Meme viu, então, Fernanda [a mãe] e Amaranta [a tia-avó] envoltas no halo acusador da realidade”. A consciência crítica da adolescente despertava contra a autoridade materna que, no seu entender, era dissimulada e, afetivamente, incapaz. “Desde as segundas férias que sabia que o pai só vivia em casa para salvar as aparências, e conhecendo Fernanda como conhecia, e tendo dado um jeito, mais tarde, de conhecer Petra Cotes [a amante], dera razão ao pai. Ela também teria preferido ser filha da concubina. No embotamento do álcool, Meme pensava com deleite no escândalo que teria provocado se, naquele momento, tivesse expressado os seus pensamentos e foi tão intensa a satisfação íntima da picardia que Fernanda percebeu.
- O que é que há com você? – perguntou.
- Nada – respondeu Meme. – É que só agora descobri o quanto amo vocês”.

(Trechos extraídos das páginas 259-260).

Ernest Hemingway

A obra “O Velho e o Mar” conta a história de um pescador que a 84 dias não apanhava nenhum peixe grande. No 85° dia, porém, fisgou um. E esse era tão grande que a luta, propriamente dita, se estendeu mais do que o esperado: “Já estava escuro, pois em setembro a noite cai mais depressa, logo a seguir ao pôr do sol. Continuava encostado à madeira da proa e descansava tanto quanto lhe era possível. As primeiras estrelas mostravam-se no céu. Não sabia bem os nomes das estrelas, mas as conhecia e sabia que dentro de pouco tempo apareceriam todas, e teria o conforto da companhia daquelas amigas tão distantes.
- O peixe também é meu amigo – disse em voz alta. – Nunca vi nem ouvi falar de um peixe desse tamanho. Mas tenho de matá-lo. É bom saber que não tenho de tentar matar as estrelas.
‘Imagine o que seria se um homem tivesse de tentar matar a lua todos os dias’, pensou o velho. ‘A lua corre depressa. Mas imagine só se um homem tivesse de matar o sol. Nascemos com sorte’.
Depois teve pena do enorme peixe que não tinha nada para comer, mas a sua determinação de matá-lo jamais arrefeceu, mesmo naquele momento de compaixão. ‘Quantas pessoas ele irá alimentar? Mas serão merecedoras de um peixe assim? Não, claro que não. Ninguém merece comê-lo, tão grande a sua dignidade e tão belo o seu modo de agir’.
‘Não compreendo estas coisas’” (p. 68). O pescador não compreendia, de todo, as circunstâncias de sua existência, no entanto, intuitivamente, sabia que precisava matar o peixe. E o fez. Só que, depois de matá-lo, sentiu necessidade de compreender com mais profundidade o porquê disso. E, assim, dentro da relação de forças da cadeia alimentar, sua vida se justificava e construía, por etapas: “[...] tudo mata tudo de uma maneira ou de outra. Pescar mata-me tal como me faz viver” (p.94).