quarta-feira, 5 de junho de 2013

O Liquidificador Humano

Não me cumprimentou. Me conhecia, mas não me cumprimentou. Os olhos se enchem de raiva:
- Pau no cú!
Hoje eu entendo melhor o que Gabriel Gárcia Márquez quis dizer com aquela passagem, em Cem Anos de Solidão, “era jovem ainda, porém, já havia sido consumida pelo rancor”. (Foi no último quarto do livro, não me lembro da página).
O rancor pode anular uma pessoa, acreditem! Acontece assim: ele não me cumprimentou, talvez porque estivesse de mal consigo mesmo, talvez porque não gostasse de mim, sei lá; numa outra oportunidade eu não o cumprimentei, pra descontar a humilhação e manter o orgulho; num terceiro encontro, ninguém se olhou. Estas coisas crescem, acreditem! A pessoa começa a imaginar um modo de atingir a outra - “não vou sorrir”, “agirei com indiferença”, “vou mudar de caminho” – acreditem!
O mesmo serumano que pisou na Lua, o mesmo serumano que escreve, que lê, que pinta, é capaz de estuprar, de apertar o gatilho, de cultivar rancor. Acreditem!
Finjo que não é comigo. Mas lamento. Sei que o rancor faz mal, que é uma doença tão devastadora quanto o câncer ou a aids, por isso, me desvencilho dele, o máximo que posso. Estava certo o poeta: “Que pode uma criatura senão,/ entre criaturas, amar?” (p.262).

[ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova Reunião. In: Amar. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília; INL; 1983].

Um comentário:

  1. Estava certo o poeta: "a gente vive, depois esquece" (Drummond, In: Toada do Amor).

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