sábado, 23 de maio de 2015

Leituras

A extraordinária
habilidade do poeta Mário Quintana oferece diferentes pontos de vista ao leitor. O sujeito é capaz de ler o poema Emergência
e achá-lo triste, mas, em outra oportunidade, pode parecer-lho realista ou proposital. Os textos clássicos possuem esta capacidade – de se renovarem diante dos olhos de quem os aprecia. Contudo, não é apenas o poema que se modifica, a alma do sujeito também. E é desta troca ou interação que nasce a poesia sentida: aquela que extrapola o texto escrito, confundindo-se com a vida da pessoa humana. Mário Quintana tinha conhecimento de causa, por isto é que não datava os seus poemas; preferia que eles fossem se encontrando sem hora marcada, com qualquer um que os procurasse, “um mistério encanando com outro mistério”.
Pensar a poesia de Mário Quintana é um esforço sem fim. Senti-la então, é mais difícil ainda. Ela aparece como que por encanto e, como que por encanto, desaparece. Os versos deste alegretense me fazem lembrar do Marcelo, o antigo namorado da minha mãe. Ele era metido à escritor... Certa vez estávamos sentados no sofá assistindo televisão quando o Mário Quintana apareceu num comercial e, junto com a sua imagem, a sua voz e o Poeminha do Contra: “Todos estes que aí estão/ Atravancando o meu caminho,/ Eles passarão./ Eu passarinho!”. O texto é de um caráter forte e, apesar de ser pequeno em palavras, é grande em conteúdo. Perguntei ao Marcelo qual era mensagem do poema:
Humildade.
Como assim?
“Eles passarão”, no sentido de querer ser mais (maior) do que os outros; “Eu passarinho”, no sentido de ser pequeno, humilde, igual a todo mundo.
Achei fantástica a interpretação, pois era original. Eu jamais compreendera o texto desta forma e, até então, o Poeminha do Contra possuía, pra mim, um único sentido. “Passarão”, de acordo com a minha lógica, indicava o verbo “passar” no futuro do presente e “passarinho”, no jogo de palavras, representava a liberdade e a eternidade do poeta, em oposição àqueles que deixariam de existir assim que o corpo morresse.
Como se vê, além de permitir uma segunda leitura, o texto clássico possui uma segunda interpretação. Não existe uma lógica na poesia, mas duas, três, que se multiplicam na medida em que se tornam sentimentos.

Um comentário:

  1. Emergência (Mário Quintana)

    Quem faz um poema abre uma janela.
    Respira, tu que estás numa cela
    abafada,
    esse ar que entra por ela.
    Por isso é que os poemas têm ritmo
    - para que possas profundamente respirar.
    Quem faz um poema salva um afogado.

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